18 julho 2005

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 269, pg. 165

A surdez. É mais doença da alma que do corpo. Ou do corpo na medida em que é doença da alma. Quase tanto como a cegueira? Não sei. O cego de nascença não está talvez privado de nada, como o homem comum das cores que não tem ou das cores que não imagina para fora das do espectro solar. E os que cegaram em vida têm memória do que viram antes. Mas não formemos a comparação de duas desgraças terríveis. Cego ou surdo. De todo o modo a separação do mundo em que estamos imbricados como não imaginamos. Os sons que aí nos faltam não são só os da música, da conversa, dos rumores da natureza desde o mar à floresta. São os próprios ruídos da casa, da rua, dos breves sons que produzimos ao pousar um copo ou uma cadeira. Porque tudo isso é nós. Tudo isso se nos intromente na alma para o seu relacionamento com o exterior, para haver um dentro de si que vai de fora de si. Tudo quanto é ruído à nossa volta nos entretece o que somos até á mais subtil ideia ou imaginação. Porque nós pensamos e imaginamos à custa de tudo isso. Estar surdo é ter a alma em prisão. Além do corpo que também.