29 junho 2005

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 275, pg. 169

Valerá a pena repeti-lo? Há cerca de 40 anos aconteceu-me a experiência e tentei dá-la em Aparição. Mas só tarde percebi porque era difícil explicá-la. Porque um «eu» é uma vivência e é assim inconvertível a uma explicação. (...) O cogito cartesiano é um erro porque é posterior à radicalidade e consciência de nós. Não é «penso, logo existo», mas «existo (sou), logo penso». A identificação com a projecção de nós é uma vivência só possível a posteriori, porque na fundura sem limite de nós, é apenas o sentir-se que se é. Do mesmo modo Heidegger errou ao fazer primordialmente do homem uma ek-sistência, uma radical presença ao Ser. Porque só o poderia, se esse Ser fosse o próprio homem ou o do próprio homem. A revelação de Ser como mistério do que «há» (il y a, es gibt) é realmente também uma «aparição», porque esse mistério antecipa-se, mas raro se dá conta dele, ao «ente». Posso olhar uma flor, um animal, a luz, uma pedra na sua realidade indiferente e superficialidade. Mas pode acontecer que o seu mistério se me revele para lá disso que vejo (ou nisso que vejo) e assim acontecer-me a sua «aparição». Mas antes dessa revelação há a revelação (lógica) de mim mesmo, a «aparição» de estar sendo, do informe e indizível em absoluta vivência de ser. Valerá a pena repeti-lo? Mas é sempre possível que a iluminação aconteça como na «demonstração» da existência (ou inexistência) de Deus. Ou da beleza de uma obra de arte. Ou do maravilhoso de uma mulher.