09 agosto 2005

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 200, pg. 125

«Nove décimos da nossa vida não se confessam. São sobretudo os da nossa fraqueza. Há um estatuto social que nos proíbe 'desabafar'. Mesmo com os amigos mais íntimos, o domínio da reserva é imenso. Uma parte dela vai às vezes para o médico, o resto para o travesseiro. É estatutário sobretudo não nos queixarmos. Seja do que for. E aí o domínio enorme do que nos humilha. Mas toda a queixa é já de si humilhante. Porque nos remete à situação de inferioridade, ou seja da superioridade dos outros perante quem nos inferiorizamos. E ser inferior, nunca. Assim uma pressuposta superioridade de quem de domina e se não queixa e um sinal inverso de petulância ou presunção, que é um defeito maior. De todo o modo, uma grande fracção da nossa vida vai para a cova connosco. Ou seja o mais historiável de nós, mesmo para os amigos, leva uma pedra por cima.»

08 agosto 2005


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«Prefácio», Fernando Pessoa

«Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação - a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso - são de homem.

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Vergílio Ferreira, «Escrever», # 190, pg. 121

A questão o «eu». Ela desenvolve-se sempre para cá da sua realidade fundamental. Porque essa realidade é uma vivência e como tal inexplicável. Antes de tudo quanto se possa dizer sobre ele, há a sua experimentação na zona do indizível. Como na do inexplicável de uma cor que se vê ou de uma dor que se sente. Ou de tudo que é investido da sensibilidade do homem. O cogito cartesiano é de uma curiosa ingenuidade. Porque quando digo «penso» já estou a «existir». Nem o «pensar» tem aqui que fazer. «Existo, logo sinto-me a ser». Por cima disso já se pode pensar o que se quiser. «Existo» ou seja «sinto-me a ser eu». Ou se quisermos o «pensar» é intrínseco ao dizê-lo. Ou ao consciencializá-lo.

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«Basta pensar em sentir», Fernando Pessoa

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar e andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

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Vergílio Ferreira, «Escrever», # 151, pg. 99

Descontruir. É a palavra recente da filosofia. Dissolução. É a palavra actual de tudo na vida. Firmas um pé numa ideia, numa regra de vida - e como? Não há centro nenhum a que se referencie seja o que for. A filosofia evita-o ou nega-o porque tudo é suspeitoso. E a vida, mais abaixo, também não o tem. A família desapegou-se, os filhos não têm pais porque não têm o que vinha neles e era a lei. (...) O homem deixou de ter sentido, os filhos nascem e crescem como animais sem dono, a família é uma instituição obsoleta, come-se avulsamente ao balcão de um snack, a mesa deixou de ser o centro de reunião do afecto unificador, a casa é, mas nem sempre, o sítio onde se dorme, o lar é uma palavra poética dos poetas atrasados como a lua ou a bonina. Há um homem novo a nascer, um homem eletrónico, cheio de botões computorizados, niquelado asséptico sem sistema nervoso. Como podes tu pensar ainda em escrever um livro? Compor um poema? Deita-te ao sol, fornica eletronicamente. E esquece, que a memória é chata, inoportuna e pelo menos reaccionária. Nada vale nada porque tudo vale tudo. E colabora assim no homem novo que aí vem e se não imagina o que seja. Excepto que tem de ser um centro ordenador para não ser menos do que um cão. Ou uma lesma. Ou uma lombriga.

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