Vergílio Ferreira, «Escrever», # 151, pg. 99
Descontruir. É a palavra recente da filosofia. Dissolução. É a palavra actual de tudo na vida. Firmas um pé numa ideia, numa regra de vida - e como? Não há centro nenhum a que se referencie seja o que for. A filosofia evita-o ou nega-o porque tudo é suspeitoso. E a vida, mais abaixo, também não o tem. A família desapegou-se, os filhos não têm pais porque não têm o que vinha neles e era a lei. (...) O homem deixou de ter sentido, os filhos nascem e crescem como animais sem dono, a família é uma instituição obsoleta, come-se avulsamente ao balcão de um snack, a mesa deixou de ser o centro de reunião do afecto unificador, a casa é, mas nem sempre, o sítio onde se dorme, o lar é uma palavra poética dos poetas atrasados como a lua ou a bonina. Há um homem novo a nascer, um homem eletrónico, cheio de botões computorizados, niquelado asséptico sem sistema nervoso. Como podes tu pensar ainda em escrever um livro? Compor um poema? Deita-te ao sol, fornica eletronicamente. E esquece, que a memória é chata, inoportuna e pelo menos reaccionária. Nada vale nada porque tudo vale tudo. E colabora assim no homem novo que aí vem e se não imagina o que seja. Excepto que tem de ser um centro ordenador para não ser menos do que um cão. Ou uma lesma. Ou uma lombriga.
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