29 julho 2005

«Ela canta, pobre ceifeira», Fernando Pessoa

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção !

Laetitia Posted by Picasa

27 julho 2005

«A Minha Solidão», José Gomes Ferreira

(Durante dias andei ruminar estes versos.)

A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...

...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.

...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.

...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.

...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.

Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...

...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

Laetitia Casta Posted by Picasa

26 julho 2005

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 242, pg. 153

O meu país reparte-se por três zonas distintas - o mar, a planície e a montanha. O mar ocupa o núcleo central na História e ouve-se em toda a nossa literatura, desde que as «ondas do mar de Vigo» às obras dos descobrimentos e à poesia de Nobre e de Pessoa. A planície arde em certas páginas de Fialho e é um pouco pitoresca na poesia do Conde de Monsaraz. E a montanha mitifica-se em Pascoaes. Dessa tríplice raiz eu sou. Aprendi a montanha ao nascer, tive a primeira noção do mar na infância e fiz uma longa aprendizagem da planície na idade adulta. Hoje tenho o país todo dentro de mim e sinto-o circular-me nas veias ao pulsar do coração. Assim o meu ser sensível se reparte com o que nele se repartiu.

25 julho 2005


Laetitia Casta Posted by Picasa

19 julho 2005

«Lisbon Revisited (1923)», Álvaro Campos

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada mais me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Laetitia Casta Posted by Picasa

18 julho 2005

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 273, pg. 168

Que estranhos os limites da memória. A grande divisória faz-se hoje entre o que é mental e o que é sensível. Posso recordar qualquer ideia que tive, se não a esqueci. mas não tudo o que senti, mesmo se recordado ainda. Seja do que é dos sentidos ou da sensibilidade. Dos sentidos recordo o que é da vista, do ouvido, e largamente o que é do tacto, sobretudo quando são as mãos que recordam. Mas não um cheiro ou um sabor. E da sensibilidade física não é possível recuperar por exemplo uma dor de dentes ou mesmo um prazer sexual. Mas da psíquica, nenhuma alegria é recuperável no senti-la de novo e pode de novo atingir-nos na vergonha que nos tomou. As fronteiras da memória, para o que é recuperável ou não, passam por onde? O que é do ser mental é sempre possível que fique do lado de dentro. Mas porque fica também o que é de alguns sentidos e não de outros? Porque é que fica de fora a dor física ou o prazer? Porque fica de fora a alegria e não o vexame? Deve haver uma razão. Não sei.

Laetita Casta Posted by Picasa

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 269, pg. 165

A surdez. É mais doença da alma que do corpo. Ou do corpo na medida em que é doença da alma. Quase tanto como a cegueira? Não sei. O cego de nascença não está talvez privado de nada, como o homem comum das cores que não tem ou das cores que não imagina para fora das do espectro solar. E os que cegaram em vida têm memória do que viram antes. Mas não formemos a comparação de duas desgraças terríveis. Cego ou surdo. De todo o modo a separação do mundo em que estamos imbricados como não imaginamos. Os sons que aí nos faltam não são só os da música, da conversa, dos rumores da natureza desde o mar à floresta. São os próprios ruídos da casa, da rua, dos breves sons que produzimos ao pousar um copo ou uma cadeira. Porque tudo isso é nós. Tudo isso se nos intromente na alma para o seu relacionamento com o exterior, para haver um dentro de si que vai de fora de si. Tudo quanto é ruído à nossa volta nos entretece o que somos até á mais subtil ideia ou imaginação. Porque nós pensamos e imaginamos à custa de tudo isso. Estar surdo é ter a alma em prisão. Além do corpo que também.

14 julho 2005


Laetitia Casta Posted by Hello

«Gato que brincas na rua», Fernando Pessoa

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

13 julho 2005


Laetitia Casta Posted by Hello

«Estou triste e não sei», Fernando Pessoa

Estou triste e não sei
O que me desola...
Ler... perder-me... Achar
Dentro de mim [ ]
Só a ciência consola.

Laetitia Casta Posted by Hello

12 julho 2005

Vergílio Ferreira, «Escrever», # 341, pg. 204

Vê se não insistes muito em perguntar porquê ou para quê, se não queres ficar paralítico. Porque a maior grandeza da vida tem o valor nela própria e não fora dela. Não se pode justificar a vida senão nela. Ou a luz. Ou a fraternidade humana. Ou a justiça. E o mais assim. E é o que é indiscutível que pode fundar um comportamento e uma razão de se estar vivo. É fácil ainda inventar ou ter razões para se atentar contra o que é indiscutível. Porque é indiscutível, não se pode discutir. E se se discute, o valor deixa de existir. Toda a cultura ou civilização assenta em pressupostos que não exigem uma demonstração e permanecem assim no intocável que é seu.

Laetitia Casta Posted by Hello

11 julho 2005

«Vem sentar-te comigo Lídia», Ricardo Reis

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

10 julho 2005


Laetitia Casta Posted by Hello

09 julho 2005

«Segue o teu destino», Ricardo Reis

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos Deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não pensam.

02 julho 2005


Laetitia Casta Posted by Hello

01 julho 2005

«Tão cedo passa tudo quanto passa!», Ricardo Reis

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.