09 agosto 2005
«Nove décimos da nossa vida não se confessam. São sobretudo os da nossa fraqueza. Há um estatuto social que nos proíbe 'desabafar'. Mesmo com os amigos mais íntimos, o domínio da reserva é imenso. Uma parte dela vai às vezes para o médico, o resto para o travesseiro. É estatutário sobretudo não nos queixarmos. Seja do que for. E aí o domínio enorme do que nos humilha. Mas toda a queixa é já de si humilhante. Porque nos remete à situação de inferioridade, ou seja da superioridade dos outros perante quem nos inferiorizamos. E ser inferior, nunca. Assim uma pressuposta superioridade de quem de domina e se não queixa e um sinal inverso de petulância ou presunção, que é um defeito maior. De todo o modo, uma grande fracção da nossa vida vai para a cova connosco. Ou seja o mais historiável de nós, mesmo para os amigos, leva uma pedra por cima.»
08 agosto 2005
«Prefácio», Fernando Pessoa
«Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação - a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso - são de homem.
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 190, pg. 121
A questão o «eu». Ela desenvolve-se sempre para cá da sua realidade fundamental. Porque essa realidade é uma vivência e como tal inexplicável. Antes de tudo quanto se possa dizer sobre ele, há a sua experimentação na zona do indizível. Como na do inexplicável de uma cor que se vê ou de uma dor que se sente. Ou de tudo que é investido da sensibilidade do homem. O cogito cartesiano é de uma curiosa ingenuidade. Porque quando digo «penso» já estou a «existir». Nem o «pensar» tem aqui que fazer. «Existo, logo sinto-me a ser». Por cima disso já se pode pensar o que se quiser. «Existo» ou seja «sinto-me a ser eu». Ou se quisermos o «pensar» é intrínseco ao dizê-lo. Ou ao consciencializá-lo.
«Basta pensar em sentir», Fernando Pessoa
Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar e andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar e andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 151, pg. 99
Descontruir. É a palavra recente da filosofia. Dissolução. É a palavra actual de tudo na vida. Firmas um pé numa ideia, numa regra de vida - e como? Não há centro nenhum a que se referencie seja o que for. A filosofia evita-o ou nega-o porque tudo é suspeitoso. E a vida, mais abaixo, também não o tem. A família desapegou-se, os filhos não têm pais porque não têm o que vinha neles e era a lei. (...) O homem deixou de ter sentido, os filhos nascem e crescem como animais sem dono, a família é uma instituição obsoleta, come-se avulsamente ao balcão de um snack, a mesa deixou de ser o centro de reunião do afecto unificador, a casa é, mas nem sempre, o sítio onde se dorme, o lar é uma palavra poética dos poetas atrasados como a lua ou a bonina. Há um homem novo a nascer, um homem eletrónico, cheio de botões computorizados, niquelado asséptico sem sistema nervoso. Como podes tu pensar ainda em escrever um livro? Compor um poema? Deita-te ao sol, fornica eletronicamente. E esquece, que a memória é chata, inoportuna e pelo menos reaccionária. Nada vale nada porque tudo vale tudo. E colabora assim no homem novo que aí vem e se não imagina o que seja. Excepto que tem de ser um centro ordenador para não ser menos do que um cão. Ou uma lesma. Ou uma lombriga.
29 julho 2005
«Ela canta, pobre ceifeira», Fernando Pessoa
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção !
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção !
27 julho 2005
«A Minha Solidão», José Gomes Ferreira
(Durante dias andei ruminar estes versos.)
A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...
...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.
...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.
...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.
Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...
...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.
A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...
...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.
...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.
...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.
Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...
...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.
26 julho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 242, pg. 153
O meu país reparte-se por três zonas distintas - o mar, a planície e a montanha. O mar ocupa o núcleo central na História e ouve-se em toda a nossa literatura, desde que as «ondas do mar de Vigo» às obras dos descobrimentos e à poesia de Nobre e de Pessoa. A planície arde em certas páginas de Fialho e é um pouco pitoresca na poesia do Conde de Monsaraz. E a montanha mitifica-se em Pascoaes. Dessa tríplice raiz eu sou. Aprendi a montanha ao nascer, tive a primeira noção do mar na infância e fiz uma longa aprendizagem da planície na idade adulta. Hoje tenho o país todo dentro de mim e sinto-o circular-me nas veias ao pulsar do coração. Assim o meu ser sensível se reparte com o que nele se repartiu.
25 julho 2005
19 julho 2005
«Lisbon Revisited (1923)», Álvaro Campos
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada mais me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada mais me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
18 julho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 273, pg. 168
Que estranhos os limites da memória. A grande divisória faz-se hoje entre o que é mental e o que é sensível. Posso recordar qualquer ideia que tive, se não a esqueci. mas não tudo o que senti, mesmo se recordado ainda. Seja do que é dos sentidos ou da sensibilidade. Dos sentidos recordo o que é da vista, do ouvido, e largamente o que é do tacto, sobretudo quando são as mãos que recordam. Mas não um cheiro ou um sabor. E da sensibilidade física não é possível recuperar por exemplo uma dor de dentes ou mesmo um prazer sexual. Mas da psíquica, nenhuma alegria é recuperável no senti-la de novo e pode de novo atingir-nos na vergonha que nos tomou. As fronteiras da memória, para o que é recuperável ou não, passam por onde? O que é do ser mental é sempre possível que fique do lado de dentro. Mas porque fica também o que é de alguns sentidos e não de outros? Porque é que fica de fora a dor física ou o prazer? Porque fica de fora a alegria e não o vexame? Deve haver uma razão. Não sei.
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 269, pg. 165
A surdez. É mais doença da alma que do corpo. Ou do corpo na medida em que é doença da alma. Quase tanto como a cegueira? Não sei. O cego de nascença não está talvez privado de nada, como o homem comum das cores que não tem ou das cores que não imagina para fora das do espectro solar. E os que cegaram em vida têm memória do que viram antes. Mas não formemos a comparação de duas desgraças terríveis. Cego ou surdo. De todo o modo a separação do mundo em que estamos imbricados como não imaginamos. Os sons que aí nos faltam não são só os da música, da conversa, dos rumores da natureza desde o mar à floresta. São os próprios ruídos da casa, da rua, dos breves sons que produzimos ao pousar um copo ou uma cadeira. Porque tudo isso é nós. Tudo isso se nos intromente na alma para o seu relacionamento com o exterior, para haver um dentro de si que vai de fora de si. Tudo quanto é ruído à nossa volta nos entretece o que somos até á mais subtil ideia ou imaginação. Porque nós pensamos e imaginamos à custa de tudo isso. Estar surdo é ter a alma em prisão. Além do corpo que também.
14 julho 2005
«Gato que brincas na rua», Fernando Pessoa
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
13 julho 2005
«Estou triste e não sei», Fernando Pessoa
Estou triste e não sei
O que me desola...
Ler... perder-me... Achar
Dentro de mim [ ]
Só a ciência consola.
O que me desola...
Ler... perder-me... Achar
Dentro de mim [ ]
Só a ciência consola.
12 julho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 341, pg. 204
Vê se não insistes muito em perguntar porquê ou para quê, se não queres ficar paralítico. Porque a maior grandeza da vida tem o valor nela própria e não fora dela. Não se pode justificar a vida senão nela. Ou a luz. Ou a fraternidade humana. Ou a justiça. E o mais assim. E é o que é indiscutível que pode fundar um comportamento e uma razão de se estar vivo. É fácil ainda inventar ou ter razões para se atentar contra o que é indiscutível. Porque é indiscutível, não se pode discutir. E se se discute, o valor deixa de existir. Toda a cultura ou civilização assenta em pressupostos que não exigem uma demonstração e permanecem assim no intocável que é seu.
11 julho 2005
«Vem sentar-te comigo Lídia», Ricardo Reis
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
10 julho 2005
09 julho 2005
«Segue o teu destino», Ricardo Reis
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos Deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não pensam.
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos Deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não pensam.
02 julho 2005
01 julho 2005
«Tão cedo passa tudo quanto passa!», Ricardo Reis
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
29 junho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 275, pg. 169
Valerá a pena repeti-lo? Há cerca de 40 anos aconteceu-me a experiência e tentei dá-la em Aparição. Mas só tarde percebi porque era difícil explicá-la. Porque um «eu» é uma vivência e é assim inconvertível a uma explicação. (...) O cogito cartesiano é um erro porque é posterior à radicalidade e consciência de nós. Não é «penso, logo existo», mas «existo (sou), logo penso». A identificação com a projecção de nós é uma vivência só possível a posteriori, porque na fundura sem limite de nós, é apenas o sentir-se que se é. Do mesmo modo Heidegger errou ao fazer primordialmente do homem uma ek-sistência, uma radical presença ao Ser. Porque só o poderia, se esse Ser fosse o próprio homem ou o do próprio homem. A revelação de Ser como mistério do que «há» (il y a, es gibt) é realmente também uma «aparição», porque esse mistério antecipa-se, mas raro se dá conta dele, ao «ente». Posso olhar uma flor, um animal, a luz, uma pedra na sua realidade indiferente e superficialidade. Mas pode acontecer que o seu mistério se me revele para lá disso que vejo (ou nisso que vejo) e assim acontecer-me a sua «aparição». Mas antes dessa revelação há a revelação (lógica) de mim mesmo, a «aparição» de estar sendo, do informe e indizível em absoluta vivência de ser. Valerá a pena repeti-lo? Mas é sempre possível que a iluminação aconteça como na «demonstração» da existência (ou inexistência) de Deus. Ou da beleza de uma obra de arte. Ou do maravilhoso de uma mulher.
24 junho 2005
«Mais uma noite, amor», Fernando Pinto do Amaral
Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte
que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te
fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto
onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte
que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te
fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto
onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?
22 junho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 65, pg. 48
Só tarde reparei que o «eu» de que tenho falado não tem «explicação». Há muitos anos já que o venho tentando e penso que sempre sem êxito. E só recentemente reparei que não tinha explicação porque era uma «vivência». Alguém sabe explicar o que é a alegria, o medo, o amor e o mais? A alegria vive-se, o medo experimenta-se, e só se diz pelos gestos ou face de quem o sente. O que julgo separar-me de quantos falaram do «eu» é que o reduzem a um conceito e o meu «eu» não o tem. Era o que o narrador de Aparição tentava transmitir aos outros. Só talvez o Bexiguinha o terá entendido bem. Mas esse era um louco. Vê tu se és capaz de te sentires a existir. Não é seguro que enlouqueças. E se enlouqueceres também não tem importância. Soubeste ao menos o que é seres.
21 junho 2005
«Seios», Alexandre O'Neill
Sei os teus seios.
Sei-os de cor.
Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.
Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.
Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!
Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!
Por que há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p´la manhã?
Quantas vezes
Interrogaste, ao espelho, os seios?
Tão Tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja em do outro, toda a santa
Noite!
Quantos seios ficaram por amar?
Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!
Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!
Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em desesperadas, quarentonas lágrimas...
Seios fortes como os da Liberdade
- Delacroix- guiando o povo.
Seios que vão à escola p´ra de lá saírem
Direitinhos p´ra casa...
Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes folhos alheios!
Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...
O amor excessivo dum poeta:
«E hei-de mandar fazer um almanaque
Na pele encadernado do teu seio!» (Gomes Leal)
Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!
Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.
Botas, botifarras
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!
Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!
«Oculta, pois, oculta esses objectos,
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos» (Abade de Jazente)
Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...
Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...
Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...
Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!
Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne
Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser.
Sei-os de cor.
Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.
Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.
Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!
Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!
Por que há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p´la manhã?
Quantas vezes
Interrogaste, ao espelho, os seios?
Tão Tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja em do outro, toda a santa
Noite!
Quantos seios ficaram por amar?
Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!
Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!
Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em desesperadas, quarentonas lágrimas...
Seios fortes como os da Liberdade
- Delacroix- guiando o povo.
Seios que vão à escola p´ra de lá saírem
Direitinhos p´ra casa...
Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes folhos alheios!
Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...
O amor excessivo dum poeta:
«E hei-de mandar fazer um almanaque
Na pele encadernado do teu seio!» (Gomes Leal)
Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!
Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.
Botas, botifarras
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!
Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!
«Oculta, pois, oculta esses objectos,
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos» (Abade de Jazente)
Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...
Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...
Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...
Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!
Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne
Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser.
17 junho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 99, pg. 65
Todo o escritor que é original é diferente. Mas nem todo o que é diferente é original. A originalidade vem de dentro para fora. A diferença é ao contrário. A diferença vê-se, a originalidade sente-se. Assim uma é fácil e a outra é difícil. A diferença é uma fórmula, a originalidade é uma forma ou mais do que isso um modo de se ser. Para se ser diferente vai-se ao alfaiate ou à modista. Para se ser original vai-se ter com Deus no momento de nos fabricar. É fácil escrever-se sem pontuação ou com pontos e vírgulas em vez de pontos finais, ou escrever com minúsculas depois desses pontos, ou atirar com as palavras à arrebatinha e dispô-las como caírem, ou escrever ondeando em vez de a direito, ou cortar a prosa aos bocados e dispô-los em vários tamanhos, ou deixar as páginas em branco ou a preto, ou fazer qualquer sorte de piruetas como um palhaço de circo. Agora o que é difícil é sentir de um modo novo, recriar um mundo por sobre o que já foi recriado, ver o que os cegos constitucionais não enxergam. Pôr seja o que for de pernas para o ar não deixa de ser o mesmo por estar ao contrário. E se se usarem óculos inversores, ele volta a estar de pernas para baixo. Mas o escritor ou qualquer artista original torna visível um dos possíveis invisíveis para uma nova visibilidade. E essa nova visibilidade é que é diferente na maneira profunda de o ser. Ou então diremos de alguém não que é original mas um original.
16 junho 2005
«Retrato Ardente», Eugénio de Andrade
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha
13 junho 2005
«Urgentemente», Eugénio de Andrade
É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.
09 junho 2005
Vergílio Ferreira, «Escrever», # 108, pg. 72
Porque te há-de ser agradável «conversar»? Dirás que há o desdobramento de ti, o entretenimento de um jogo verbal, a aprendizagem que vem sempre na conversa com os outros. Mas podias contrapor a isso o esforço de atenção a que és obrigado, o cansaço da vigilância para dizeres coisas com interesse e não passares por ser idiota por sorrires apenas e estares calado. E há a má criação de não se estar activo e colaborar. E teres muitas vezes que fingir um interesse que não tens. Mas o interesse da conversa não tem geralmente sentido nenhum. É uma conversa em derivas, que não sabe onde irá dar, que inventa em cada ideia um disparo para um lado incerto, que se estrutura na desconexão e acidentalidade e imediato olvido, que é um não-ser feito palavra ou ruído. Por isso uma conversa que se fixe em gravação é um disparate que nos faz rir. E se se reduz à escrita é um disparate ilegível. Porque é que te agrada uma conversa? Exactamente porque ela se esquece. E o que fica é um certo alívio de entretanto se existir.
E o existir pesa tanto.
E o existir pesa tanto.